
No porto de Belém, em 1876, o inglês Henry Wickham embarcava no transatlântico SS Amazonas carregando uma carga que mudaria o mundo: 70 mil sementes de Hevea brasiliensis. Nervoso, declarou às autoridades que levava apenas “amostras botânicas delicadas” destinadas ao Jardim Botânico Real de Kew Gardens, em Londres. Mal sabia a cidade que aquele embarque aparentemente inofensivo marcaria o início de uma grande reviravolta econômica.
Liberado para seguir viagem, Wickham cruzou o Atlântico em uma travessia “calma e azul”, como registrou em suas memórias. À época, Belém era uma capital em plena modernização, enriquecida pela borracha que abastecia a revolucionária indústria europeia e americana. Mas o plano britânico, cuidadosamente ocultado, tinha outro rumo: criar imensos seringais nas colônias da Ásia e quebrar o monopólio amazônico.
No laboratório natural britânico, apenas 2,6 mil sementes germinaram — mas foram suficientes. Transplantadas para Malásia, Singapura e Sri Lanka, as árvores prosperaram e iniciaram uma nova era para a borracha mundial.
O colapso de uma riqueza e o impacto na Amazônia
As vantagens asiáticas eram enormes. Enquanto na Amazônia o látex exigia longas viagens pelos rios e árvores dispersas na floresta, no Sudeste Asiático a produção foi organizada em plantações extensivas, próximas a portos eficientes. A consequência foi devastadora: na década de 1910, a economia amazônica, até então dependente quase exclusivamente da borracha, desmoronou.
O auge e a queda deixaram marcas duradouras. Mesmo quando um segundo ciclo, durante a Segunda Guerra Mundial, trouxe esperança temporária, o fim do conflito devolveu a Amazônia ao abandono econômico. A desigualdade tornou-se estrutural, e as periferias continuaram crescendo sem serviços básicos.
Wickham: herói, vilão ou peça de um sistema colonial?
A retirada das sementes foi descrita pelo próprio Wickham como “contrabando”, e muitos a evocam hoje como um caso precursor de biopirataria. No entanto, especialistas destacam que, na época, não havia legislação que proibisse a exportação. Para o pesquisador Nelson Sanjad, julgar o episódio pelos critérios modernos seria anacrônico; mais importante é entender o contexto de exploração colonial que moldou o século 19.

Do lado britânico, o Kew Gardens reconhece o passado extrativista e suas consequências ambientais e sociais. Wickham, premiado e transformado em “Sir” em 1920, tornou-se símbolo de um processo que envolveu diversos países europeus em busca da valiosa seringueira.
Lições que ecoam na Belém da COP30
Hoje, Belém sedia a COP30 e vê investimentos transformarem a cidade mais uma vez. Novas avenidas, revitalizações e obras urbanas reacendem debates sobre quem se beneficia dessas mudanças. Enquanto áreas centrais recebem grandes reformas, bairros periféricos — herdeiros diretos da desigualdade do ciclo da borracha — ainda aguardam melhorias prometidas.
Para muitos moradores, a cidade vive outro momento decisivo. Assim como no século 19, o mundo volta seus olhos para a Amazônia. A diferença é que agora a riqueza a ser preservada não é a que se extrai da floresta, mas a que se mantém nela.
Referências da notícia
BBC Brasil. O ‘roubo’ transatlântico que mudou a história de Belém e da Amazônia. 2025
