Imagine acordar em uma manhã comum e descobrir que você está sendo processado por um crime que ninguém consegue explicar com clareza. Não há acusação objetiva, não há provas concretas, apenas um labirinto burocrático que se fecha lentamente ao seu redor. A Justiça deixa de ser um instrumento de proteção e se transforma em um mecanismo opaco, imprevisível e sufocante. Esse é o enredo de O Processo, de Franz Kafka, publicado postumamente em 1925. Cem anos depois, o romance soa menos como ficção e mais como advertência profética.
Há livros que envelhecem. O Processo, não. Ao contrário: quanto mais o tempo passa, mais inquietante se torna sua atualidade. Mais do que uma obra literária, Kafka escreveu um retrato preciso do que acontece quando o devido processo legal se dissolve e o Estado passa a exercer poder sem a necessidade de se explicar.
No romance, Josef K. é acusado sem saber exatamente de quê. Ele não conhece seus acusadores, não compreende as regras do procedimento e jamais tem acesso a um tribunal plenamente identificável. O processo avança sem avançar, julga sem esclarecer, pune sem provar. A condenação não é apenas o desfecho — é o próprio caminho. O processo se transforma na pena.
Como advogada de imigração atuando nos Estados Unidos, represento Filipe Martins em questões imigratórias relacionadas ao seu caso. Filipe, um jovem brilhante e comprometido com suas ideias conservadoras, foi condenado a 21 anos e 6 meses de prisão pela Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), sob a acusação de participação em um suposto golpe de Estado após as eleições de 2022. Independentemente de posições políticas, o que me move — e deveria preocupar qualquer observador comprometido com o Estado de Direito — são os contornos processuais do caso: opacidade, fragilidade probatória e inversões graves de garantias fundamentais que afetam diretamente a vida de meu cliente.
Assim como Josef K., Filipe se vê enredado em um processo no qual a lógica parece operar de forma invertida. Inferências são elevadas à categoria de fatos irrefutáveis, narrativas ideológicas ganham precedência sobre provas robustas e a defesa é forçada a responder não a acusações claramente delimitadas, mas a construções fluidas e mutáveis. O ônus da prova, pilar básico do processo penal moderno, desloca-se silenciosamente do Estado para o acusado — uma inversão que Kafka descreveu com maestria.
Kafka compreendeu com precisão cirúrgica esse tipo de engrenagem. Em O Processo, não é necessário demonstrar a culpa de Josef K.; ela simplesmente existe, sustentada por uma burocracia autorreferente, impermeável à contestação real. O acusado não é julgado por atos concretos, mas pelo que representa ou simboliza. O processo deixa de ser um meio de apuração da verdade e passa a funcionar como um ritual de confirmação de uma culpa presumida.
No caso de Filipe Martins, um dos episódios mais emblemáticos — e dolorosos para quem acompanha de perto — envolve registros de supostas entradas nos Estados Unidos, utilizados para justificar sua prisão preventiva sob o argumento de risco de fuga. Esses registros apresentavam inconsistências graves: grafia incorreta do nome (“Felipe” em vez de “Filipe”), número de passaporte cancelado desde 2021, tipo de visto incompatível e data — 30 de dezembro de 2022 — em que Filipe estava comprovadamente no Brasil. A partir de medidas judiciais adotadas por nossa equipe nos Estados Unidos, o próprio governo americano reconheceu publicamente que o registro era incorreto, que Filipe não entrou no país naquela data e que sua inclusão indevida está sob investigação.
Esse falso registro custou caro a meu cliente: quase dois anos de vida roubados, com longos períodos em regime fechado — incluindo dez dias em solitária — e, mesmo após a progressão para regime semiaberto, restrições severas que ainda limitam drasticamente sua liberdade, como monitoramento eletrônico e proibições de contato que o mantêm isolado de familiares e amigos. Como em Kafka, um erro burocrático — ou algo mais grave — que ninguém corrige prontamente produz consequências humanas devastadoras e irreparáveis.
Há ainda restrições à publicidade do caso, controvérsias quanto à produção e valoração das provas e limitações ao pleno exercício da defesa. Esses elementos, analisados em conjunto, não revelam apenas falhas pontuais, mas levantam questionamentos profundos sobre a integridade do procedimento — questionamentos que eu, como sua advogada, vivo diariamente na luta por justiça.
Não é irrelevante que O Processo complete cem anos exatamente agora. O desconforto que a obra provoca em 2025 não vem de sua distância histórica, mas de sua assustadora familiaridade com casos como o de Filipe. Sistemas jurídicos não se deterioram de uma vez; eles se desgastam gradualmente, normalizando exceções, relativizando garantias e tratando o extraordinário como aceitável. Kafka descreveu esse processo com precisão perturbadora.
Ao final do romance, Josef K. morre sem jamais compreender plenamente sua culpa. No mundo real, ainda há escolha — e esperança. Processos não precisam se transformar em punições antecipadas. Ideias, por mais controversas que sejam, não podem ser tratadas como crimes. E o Direito não pode se tornar instrumento de validação do arbítrio. Quando a ficção de Kafka deixa de ser literatura e passa a ecoar na realidade de Filipe Martins, não é o livro que precisa ser reinterpretado — é o sistema que precisa ser urgentemente revisto.
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