Por que a Suécia paga pais para cuidarem de filhos doentes

Por que a Suécia paga pais para cuidarem de filhos doentes
Quando as crianças ficam doentes na Suécia, os pais podem ficar em casa para cuidar deles e recebem 80% do salário. Essa política é popular, mas vem sofrendo pressão devido à pandemia. Na Suécia, benefícios oferecidos pelo Estado permitem que pais e mães desenvolvam suas carreiras sem prejudicar o cuidado com os filhos

Getty Images via BBC

Com três filhos na pré-escola, o gerente de marcas Jeremy Cothran preparou-se para o caso de sua família ter resfriados, Covid-19 ou outras infecções em algum momento durante o inverno do hemisfério norte. Mas os dias que antecederam o Natal foram ainda piores do que ele imaginava.

"Tivemos uma sucessão de crianças doentes, com febre ou norovírus", conta Cothran, que tem 41 anos e trabalha para uma companhia de recrutamento na área de tecnologia na capital da Suécia, Estocolmo. "As doenças acabaram culminando em vômitos tarde da noite e visitas à lavanderia do prédio logo pela manhã, para lavar roupas e lençóis."

Mas parte da pressão que atingiu sua família foi reduzida por uma política sueca conhecida como "Vård av Barn" (abreviada como "VAB"). Em tradução livre, significa "cuidado com criança" e oferece aos pais o direito de tirar licenças pagas para cuidar dos seus filhos quando eles ficarem doentes.

Isso significa que os pais suecos, ao contrário de muitos pais em outras partes do mundo, não precisam correr para procurar parentes para ajudá-los, tirar férias ou licenças não remuneradas, nem simplesmente tentar levar trabalho para casa quando seus filhos ficam doentes.

"É uma imensa rede de segurança", afirma Cothran, que nasceu nos Estados Unidos. Ele e a esposa, que é chefe de marketing, tiraram ao todo nove dias de VAB durante o último ciclo de doença dos seus filhos. "Não temos suporte familiar na Suécia e [por isso] temos dificuldade de lidar com abalos no nosso sistema familiar. Sem o VAB, não teríamos como conseguir administrar a carreira, a vida familiar e nossa saúde mental ao mesmo tempo."

Ao lado das políticas de auxílio familiar mais famosas da Suécia, como licenças-maternidade e subsídio para creches, o VAB está sendo cada vez mais utilizado pelas empresas suecas como ferramenta para atrair e reter talentos internacionais como Cothran. Mas, da mesma forma que outras iniciativas que oferecem bem-estar para os funcionários, como férias ilimitadas ou intervalos de exercício obrigatórios, o VAB traz dificuldades além dos benefícios - incluindo preocupações sobre possíveis atrasos para a carreira dos pais se for utilizado com frequência excessiva.

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Divulgação/Família Real Sueca

Cultura do trabalho amiga da família

O benefício do VAB pode parecer um sonho idealizado pelos empregadores durante a pandemia, mas, na verdade, foi incorporado à legislação sueca há décadas.

O Estado paga 80% do salário do pai ou da mãe, limitado a cerca de 1.081 coroas suecas (R$ 660) por dia. Mães e pais podem tirar quantos dias precisarem, dentro do limite anual de 120 dias por criança, até que eles completem 12 anos de idade (mas é preciso ter uma declaração do médico após oito dias consecutivos).

Os pais podem também nomear outros membros da família, amigos ou vizinhos como cuidadores que ganham VAB pago em seu nome. Até os autônomos têm direito ao benefício, que é calculado com base na sua renda anual. Todo o processo é realizado por meio do aplicativo da Agência Sueca de Assistência Social.

O VAB é tão comum que existe até um verbo em sueco derivado do conceito: "att vabba", que significa ficar em casa cuidando de seu filho. Nas companhias internacionais onde o inglês é mais falado, é possível ouvir frequentemente a expressão mista em inglês e sueco "I'm vabbing" (algo como "estou VABando", em português). Os suecos chamam o mês de fevereiro de "vabruari" porque é comum que os locais de trabalho fiquem vazios, com os pais forçados a "vabar" durante esse mês de inverno, mês de inverno repleto de vírus.

Os empregadores não podem recusar aos funcionários seu direito de tirar VAB, e a maioria das empresas é compreensiva quando os pais precisam fazer uso do benefício. "Meu chefe tem dois filhos e muitas vezes precisa [usar o] VAB, por isso toda a companhia é muito compreensiva", afirma Cothran. "Nós até temos um ícone de status VAB no [aplicativo] Slack, que sinaliza imediatamente para a empresa quando alguém não está disponível."

A extensão em que o Estado e as empresas suecas auxiliam as famílias com crianças doentes é de fazer cair o queixo em países dependentes de provedores privados de serviços de saúde e creches, mas esse benefício faz sentido no contexto do longo histórico de políticas amigas da família da Suécia.

O VAB foi introduzido em 1974, ao mesmo tempo em que o país se tornou o primeiro do mundo a introduzir a licença-maternidade (ou paternidade) remunerada independente do gênero. No ano seguinte, creches acessíveis e subsidiadas pelo Estado passaram a ser oferecidas para todos os pais.

Nesse panorama, o VAB agora é "tão estabelecido e prático para os pais" que é amplamente aceito pelos partidos e eleitores de todo o espectro político, segundo Katarina Boye, socióloga do Instituto de Pesquisas Sociais da Suécia.

Para os empregadores, o VAB apresenta dificuldades óbvias em termos de prejuízo a projetos ou caminhos planejados. Mas ele ainda é popular junto às empresas, pois permite que elas atraiam e retenham força de trabalho diversificada, segundo Catharina Bäck, pesquisadora da Confederação do Empresariado Sueco, que representa 60 mil empresas.

Ela argumenta que o VAB é um dos fatores que permitiram à Suécia atingir a taxa de emprego feminino mais alta da União Europeia, já que ele facilita a permanência das mulheres no mercado de trabalho enquanto elas cuidam dos filhos pequenos.

"A licença-maternidade e o sistema de assistência - que inclui o VAB - em conjunto com as creches são pré-requisitos essenciais para que os dois pais combinem a vida profissional com a vida familiar", afirma Bäck.

Existem também benefícios para as pessoas que não têm filhos, como o potencial de reduzir a difusão de doenças entre os funcionários nos locais físicos de trabalho, o que tem sido um benefício importante durante a pandemia.

"Para mim, o impacto é positivo, pois meus colegas não vêm para o trabalho trazendo bactérias transmissíveis dos seus filhos pequenos", afirma Åsa Svensson, de 30 anos, funcionária de comunicações do sul da Suécia, que não tem filhos.

Paralelamente, ela tem a oportunidade de trabalhar ao lado de muitas mães jovens, algo que ela acredita que não seria possível se vivesse em um país com um sistema de assistência social menos desenvolvido.

"É uma questão de solidariedade", afirma. "Como mulher fortemente identificada como feminista, acho absolutamente maravilhoso".

Compromisso dos casais

Apesar da sólida popularidade do VAB, o conceito traz algumas dificuldades, muitas das quais se exacerbaram durante a pandemia.

Estatísticas da Agência Sueca de Assistência Social indicam que, embora o país se encaminhe para o uso do VAB igualmente entre os gêneros, as mães ainda tiram a maioria dos dias, em proporção de 60:40 dos dias entre mulheres e homens. No Instituto de Pesquisas Sociais, Boye afirma que isso provavelmente se deve, em parte, ao fato de que a maioria dos homens ainda recebe os maiores salários do setor privado na Suécia. Nesses casos, eles sofrem mais impacto que as mulheres com salários menores, devido ao limite diário de pagamento imposto pelo VAB.

Orientações de gênero também podem ter influência. "Nós ainda esperamos que as mulheres sejam mais afetivas e cuidadosas - e as expectativas sobre as 'boas mães' são diferentes do que se espera dos 'bons pais'", afirma Boye.

Mesmo em casais dispostos a compartilhar igualmente os encargos, decidir qual deles é mais adequado para tirar um VAB inesperado pode ser uma causa comum de atrito, segundo Manne Forssberg, escritor sobre criação de filhos e produtor de um podcast em Estocolmo.

"Pode realmente parecer um problema de luxo do primeiro mundo porque somos extremamente privilegiados por termos o VAB disponível para uso. Mas é uma dificuldade decidir rapidamente quem tem o trabalho mais importante", afirma ele.

Em 2020, os dias de VAB aumentaram acentuadamente devido à pandemia. Forssberg escreveu um artigo intitulado "Como salvar seu casamento em tempos de VAB" e usou seu podcast para aconselhar os pais a compartilhar seus cronogramas todos os domingos e planejar com antecedência quem tiraria VAB se um dos seus filhos ficasse subitamente doente.

Cothran e sua esposa usam esse método, já que ambos têm cargos de liderança sênior com altas responsabilidades e muitas vezes decidem tomar turnos de VAB de meio período cada um.

"Muitas vezes, ela tem compromissos como reuniões de diretoria que não podem ser adiados, mas fazemos o melhor possível para dar cobertura um ao outro e passar o bastão do VAB de forma razoável", afirma ele.

Mas, como aconteceu com milhões de casais em trabalho remoto nos seus apartamentos durante a pandemia em todo o mundo, Cothran ressalta que isso ficou mais difícil, pois as fronteiras entre a vida doméstica e a corporativa vêm ficando cada vez mais indefinidas. "Às vezes, é difícil para o pai que não está em VAB encontrar um local calmo para trabalhar em casa... de fato, existem momentos em que os filhos gritando e brigando tornam-se uma distração".

E, se ele estiver em VAB, a sua carga de trabalho e o compromisso com sua equipe fazem com que ele ainda entre no sistema da empresa para verificar seu e-mail depois de um dia cheio de cuidados com as crianças.

"Bem, o trabalho não para só porque você está em VAB", diz. "Se você for um gerente como eu ou minha esposa, você precisa ser bom em delegar, para que o serviço não se acumule e gere ainda mais estresse, além de toda a tensão que você já está enfrentando em casa."

Nos últimos anos, surgiu também um conceito mais informal chamado de "att vobba", que é uma junção das palavras "att vabba" e "att jobba", que significa "trabalhar" em sueco. "Vobba" significa que, em vez de tirar VAB, você se compromete a oferecer um dia de trabalho ao mesmo tempo em que cuida do seu filho doente. A ideia é que você consiga manter seus compromissos profissionais e, se o seu salário for alto, você não perde o pagamento devido ao limite diário do benefício do VAB.

Esta prática tornou-se mais comum durante a pandemia, quando crianças relativamente saudáveis foram mantidas fora da escola devido a resfriados menores. Mas os sindicatos suecos expressaram preocupações com a possibilidade de aumentar o risco de burnout e aconselharam os funcionários a ter cuidado com patrões que os incentivam a tirar "vobba" em vez de exercer seu direito legal ao VAB.

Seria um assassino secreto de carreiras?

Legalmente, as empresas suecas não podem discriminar pais que precisam de VAB (ou "vobba") mais do que outros, mas alguns trabalhadores não têm certeza se isso é sempre respeitado.

Catarina - que preferiu não divulgar seu sobrenome porque trabalha como servidora pública - normalmente tira a maior parte dos dias de VAB em comparação com seu marido e completou um total de quatro semanas entre novembro e dezembro de 2021.

"Posso dizer que isso chama a atenção de alguns colegas. Uma questão é que ninguém é chamado para cobrir a minha ausência, de forma que o meu trabalho não é distribuído entre os colegas", afirma ela, que é mãe de duas crianças e mora em Estocolmo. "Também sinto que pode haver uma certa hesitação para me promover para um cargo de maior liderança devido à quantidade de dias de VAB que uso por ano, mas é claro que isso não me é dito abertamente."

As pesquisas de Boye, publicadas em 2015, demonstram que os pais suecos têm menor crescimento salarial ao longo dos anos em que seus filhos são pequenos, quando eles tiram mais dias de VAB. Isso se aplica tanto às mães quanto aos pais, mas neste ponto os homens são os mais prejudicados. Pais que tiram regularmente dias de VAB levam para casa um salário 2% menor que os que usam o benefício dentro da média; para as mães, essa redução é de 0,5%.

"Pais e mães de licença representam um sinal de falta de compromisso profissional para os seus empregadores", argumenta Boye. "Esse sinal pode ser mais forte para os pais que para as mães porque os empregadores esperam que os pais sejam mais comprometidos em primeiro lugar."

O conceito é caro

O pagamento dos dias de VAB dos pais também representa um custo considerável para o Estado sueco.

Em 2019, o país cobriu 6,7 milhões de dias de VAB para uma população de 10 milhões de habitantes. Esse número atingiu um recorde de 8,3 milhões de dias em 2020, quando a Covid-19 se espalhou e os suecos precisaram ficar em casa com qualquer sintoma de resfriado. Segundo a Agência Sueca de Assistência Social, o benefício custou aos cofres públicos 1,7 bilhões de coroas (R$ 99,5 milhões).

A economia sueca vem se recuperando das perdas da pandemia melhor que a maioria dos países, mas tem havido debates políticos e na imprensa sobre como continuar a absorver esse aumento de custos se a Covid-19 seguir trazendo altos níveis de dias de VAB nos próximos invernos.

Existem também preocupações sobre o impacto financeiro de pais que deliberadamente abusam ou extrapolam o uso do sistema. Os suecos têm altos níveis de confiança nas instituições há muito tempo e, por isso, tendem a respeitar as normas vigentes. Mas, em 2019, o número de pais suspeitos de reivindicar benefícios de VAB falsa ou incorretamente aumentou em quase 50%, enquanto a Agência de Assistência Social do país verificava as pessoas que usavam o VAB com mais frequência - e algumas delas recebiam seus salários habituais simultaneamente.

O governo lançou uma consulta pública, cujos resultados devem ser publicados em 2022. "Os empregadores precisam de ferramentas melhores para poder determinar a legalidade da licença VAB e coibir seu mau uso", argumenta Catharina Bäck, da Confederação do Empresariado Sueco, que participa da consulta.

Inspiração global

Apesar das dificuldades do VAB, é difícil encontrar um sueco que não apoie o sistema. "Ele é muito popular e não é questionado por nenhum grupo ou partido, de meu conhecimento", confirma Boye.

"É claro que ele não é perfeito, mas é um sistema fantástico que certamente deveria ser reproduzido em outras partes do mundo", argumenta o norte-americano Jeremy Cothran. "Tenho amigos no meu país que declaradamente demoraram para ter filhos porque querem concentrar-se nas suas carreiras. Isso é compreensível, mas aqui na Suécia parece que você consegue fazer as duas coisas."

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