Covid: por que América Latina concentra maior número de vítimas no mundo?
Instabilidade política, desigualdade social e falta de diretrizes claras e unificadas para o enfrentamento da pandemia são alguns dos motivos que fazem a região ser a mais afetada pelo coronavírus. Aceleração das mortes por Covid-19 na América Latina a partir de 2021 pode ser explicada por uma série de fatoresGetty via BBCNo clássico livro "As Veias Abertas da América Latina", o uruguaio Eduardo Galeano escreve que "a primeira condição para mudar a realidade consiste em conhecê-la".E a realidade da pandemia nessa mesma América Latina não podia estar pior: a região que concentra 8% da população mundial responde por quase um quarto de todas as mortes por Covid-19 registradas até agora.Leia também:Uruguai doa milhares de doses de vacina contra a Covid ao ParaguaiCom números revisados, Peru se torna país com mais mortes por milhão de habitantesVariante lambda: o que se sabe sobre mutação verificada na América do SulAvanço da variante delta altera reabertura na EuropaVariante delta tem se tornado dominante no mundoVÍDEO: Conheça 4 variantes do novo coronavírusDos 30 países com o maior número de novos casos diários confirmados por milhão de habitantes, 14 deles estão nesse pedaço do planeta: Uruguai, Colômbia, Argentina e Suriname apresentam os piores índices de momento.A situação se repete quando analisamos a média relativa de novas mortes nos últimos sete dias: das 30 nações com os números mais graves, 14 estão localizadas na América Latina ou no Caribe. O cenário é dos mais desoladores no Paraguai, no Peru, na Colômbia e na Argentina. E, no meio desse caos, o Brasil se destaca: prestes a se tornar o segundo local do mundo a ultrapassar as 500 mil mortes provocadas pelo coronavírus, especialistas apontam que o país influencia direta e indiretamente o agravamento da situação nas nações vizinhas.Mas como a América Latina chegou ao posto de epicentro da pandemia?Situação que só pioraHellen Nanez, que perdeu 13 parentes para a Covid-19, visita túmulo de tia em Pisco, no Peru, em 9 de maioAlessandro Cinque/ReutersDesde que os primeiros casos da Covid-19 foram descritos na China em janeiro de 2020, países e regiões passaram por momentos mais ou menos complicados.O primeiro local a ser acometimento gravemente pela pandemia foi a Europa: entre março e junho de 2020, o continente foi o líder nas mortes por milhão de habitantes provocadas pela nova doença. A partir do segundo semestre de 2020, as Américas passaram a ser o novo epicentro da pandemia. Em algumas semanas dos meses de julho a dezembro do ano passado, a situação ficava pior no Norte, com destaque para os Estados Unidos. Em outras, o agravamento era maior no Sul, com participação decisiva do Brasil.Esse panorama se manteve assim até março de 2021, quando a América do Sul tomou a dianteira e abriu uma vantagem considerável sobre as demais localidadesNo dia 16 de junho de 2021, a nossa região contabilizava um acumulado de 2,2 mil mortes a cada milhão de habitantes. Equador é um dos países da região com mais casos confirmados e mortes por Covid-19Reuters/Vicente Gaibor del Pino Enquanto isso, esse número estava em 1,5 mil na América do Norte, 1,4 mil na Europa, 162 na Ásia, 101 na África e 25 na Oceania.A partir de março de 2021, a América do Sul tomou a dianteira e virou o lugar com o maior de número de mortes por Covid-19 por milhão de habitantesE essa disparidade se acentua ainda mais quando analisamos a média diária da última semana, o que demonstra a evolução da gravidade da Covid-19 num período mais recente.Enquanto a América do Sul apresenta 9 óbitos por milhão de habitantes, esse índice está em 1,2 na Europa, 1,1 na América do Norte, 1 na Ásia, 0,26 na África e 0,01 na Oceania.Essas informações vêm do Our World In Data (que adota o critério América do Norte X América do Sul, em vez da denominação América Latina), site que compila estatísticas globais da pandemia.Do exemplo à frustraçãoVista aérea de uma das principais vias da cidade de Buenos AiresJuan Mabromata / AFPVale destacar que, em meio a tantos gráficos, curvas e números, alguns países da América Latina despontaram como exemplos positivos ao longo de 2020 e início de 2021.Foram os casos de Paraguai, Uruguai e Argentina, que eram sempre lembrados como símbolos de boa conduta e políticas públicas bem feitas e com bons resultados. O Chile, por sua vez, era elogiado por sua campanha de vacinação pioneira, veloz e eficiente, capaz de proteger milhões de pessoas num curto espaço de tempo.Mas algo diferente aconteceu nos últimos dois ou três meses: esses mesmos países viram os números de novos casos e óbitos piorarem repentinamente.Caixões empilhados em funerária de San Lorenzo, no Paraguai, nesta quarta (16)Norberto Duarte/AFPHoje, eles aparecem no grupo das nações com a situação mais preocupante da pandemia, ao lado de Brasil, Peru e Colômbia. E nem dá pra dizer que a culpa é das estatísticas, que acabam ficando infladas pelo número elevado de habitantes nessas bandas do planeta: as análises epidemiológicas mais confiáveis fazem a ponderação matemática e levam em conta os índices proporcionais, que relativizam as taxas segundo a população.Outro dado gritante vem das análises do Financial Times, que calculou o excesso de mortes segundo as médias históricas de cada país: os cinco primeiros do ranking são todos latino-americanos (Peru, Equador, Nicarágua, Bolívia e México). O Brasil aparece em sétimo lugar, atrás do Azerbaijão.E aquele número citado no início da reportagem reforça mais uma vez essas observações: se a América Latina abarca 8% da população mundial, como que ela pode concentrar 24% de todas as mortes por Covid-19?Uma região desigualFuncionário do Ministério da Saúde realiza teste de coronavírus em paciente em Lima, no Peru, em 20 de agosto de 2020Ernesto Benavides/AFP Em novembro de 2020, a prestigiosa publicação científica The Lancet publicou um editorial que já chamava a atenção para a pandemia na América Latina.Os autores parecem antecipar o problema que passaríamos a viver dali a alguns meses: eles classificam que a Covid-19 não significou apenas um problema de saúde pública, mas uma crise humanitária para esse conjunto de países."Para quem está de fora, grande parte da discussão sobre a Covid-19 na América Latina se concentrou no Brasil e nos erros do presidente Jair Bolsonaro", escrevem."Mas a região como um todo está enfrentando uma crise humanitária, nascida da instabilidade política, da corrupção, da agitação social, dos sistemas de saúde frágeis e, talvez o mais importante, da desigualdade de renda, saúde e educação duradoura e generalizada", completam.A desigualdade é mesmo um dos fatores que parece mais ter contribuído para a atual situação: ainda de acordo com o artigo do The Lancet, 54% da força de trabalho latino-americana é informal. Em alguns países, como o Peru, esse número ultrapassa os 70%.Ou seja: esse contingente enorme de pessoas não possui a mínima condição de permanecer em casa por longos períodos de tempo, pois necessitam sair às ruas para garantir o sustento das próximas horas. Isso ajuda a explicar em parte os momentos contrastantes das nações bem e mal sucedidas no controle do coronavírus: Argentina, Paraguai e Uruguai até conseguiram criar políticas públicas para controlar a circulação de pessoas, mas isso só foi possível por um período de tempo muito curto. "Após a quarentena, a flexibilização ocorreu de forma indiscriminada, sem qualquer planejamento, controle epidemiológico ou testagem em massa", observa o médico José David Urbaez, presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia no Distrito Federal. "As lideranças da América Latina não entenderam que o foco deveria ser nas medidas que não permitem o alastramento do vírus, para que a transmissão não atinja níveis dramáticos", critica. A bioquímica e imunologista Marcela Gatica, da Universidade de La Serena, no Chile, detalha como esse fenômeno de fechar e abrir as atividades repercutiu na prática:"Aqui no Chile a disparidade socioeconômica é gritante. Há uma parcela da população que precisa trabalhar para conseguir comer", contextualiza."Nas regiões metropolitanas, esses indivíduos pegam transporte público apertado para se locomover e costumam dividir a casa com muitos moradores. Tudo isso contribui para a disseminação do vírus", completa. Até o final de 2020, estima-se que 231 milhões de latino-americanos viviam na pobreza, um nível que só havia sido observado há 15 anos. Para completar, esse pedaço do continente americano é marcado por uma instabilidade política muito intensa: no último ano, foram registrados protestos massivos na Colômbia, no Peru e no Brasil. Pessoas chegam a uma seção eleitoral para votar no segundo turno da eleição presidencial em Lima, Peru. REUTERS / Liz TasaEquador, Peru e Bolívia registraram eleições presidenciais muito tensas e disputadas, enquanto o Chile se viu diante de um plebiscito para mudar a constituição após movimentos sociais tomarem as ruas em 2019.Isso tudo, claro, se reflete no enfrentamento da pandemia: em meio a tantas tormentas, as políticas sanitárias muitas vezes ficaram em segundo plano ou variaram de acordo com preferências políticas e pressões de grupos com interesses variados. Serviços de saúde precáriosUm segundo ingrediente que não pode ser ignorado é a falta de sistemas públicos de saúde bem estruturados: com exceção de Brasil e Costa Rica, os moradores dos outros países latino-americanos têm acesso limitadíssimo a consultas, exames, hospitais e serviços de acompanhamento e prevenção. "Sem cobertura universal de saúde, é impossível lidar com a pandemia", afirmam os autores do artigo publicado no The Lancet. As mesmas falhas se repetem nos sistemas de vigilância epidemiológica e genômica: a América Latina é um dos lugares que menos faz testes para o diagnóstico da Covid-19.Em alguns países, o índice de positividade dos exames que detectam o coronavírus beira os 50% — a Organização Mundial da Saúde calcula que uma taxa abaixo de 5% indica um bom controle da pandemia.A ausência das tais políticas públicas de saúde se reflete nos próprios indicadores da região: em países como Chile e México, 75% das mulheres apresentam excesso de peso. Os índices de sobrepeso, obesidade e diabetes também só aumentam em toda a América Latina: a disponibilidade de alimentos altamente calóricos e ricos em açúcar, sal ou gordura por preços baixos facilita e estimula o consumo, especialmente entre os mais pobres.Tudo isso vai desembocar no cenário que vivemos hoje: falamos de países em que uma enorme parcela da população apresenta fatores de risco para o agravamento da Covid-19 e não há a estrutura mínima necessária para o diagnóstico, o acompanhamento e o atendimento adequado de tantos pacientes. E esse cenário interno se reflete na condução e no enfrentamento de problemas de forma coletiva: ao contrário do que acontece em outros continentes, a América Latina não possui instituições regionais capazes de lançar diretrizes, criar políticas públicas ou fazer estudos de forma coordenada entre as várias nações.Até a África, que apresenta uma situação socio-econômica parecida com a nossa, tem o Centro Africano de Controle e Prevenção de Doenças, um órgão com capacidade de aglutinar esforços e produzir uma resposta unificada entre vários países. A influência brasileiraComo maior economia da região, é claro que o Brasil exerce um papel decisivo sobre o que acontece de positivo ou de negativo na América Latina. Durante a pandemia, essa atuação ficou bastante evidente: especialistas avaliam que nosso país teve influência direta e indireta sobre o agravamento da Covid-19 em nossos vizinhos."Historicamente, o Brasil contou com personalidades da força de Oswaldo Cruz, Carlos Chagas e Emílio Ribas, que construíram uma das escolas de doenças infecciosas mais prestigiosas do mundo. Nós também tínhamos modelos de controle virais modernos e reconhecidos internacionalmente, que funcionavam em sintonia com um Sistema Único de Saúde imenso", explica Urbaez."Na América Latina, sempre fomos referência para certificar e validar práticas sanitárias e de saúde pública. E é inacreditável ver todo esse saber e esse papel simbólico ser trucidado agora", complementa. Além da influência indireta, o Brasil também contribui claramente para que a situação se agravasse além de suas fronteiras: a variante Gama, que parece ter se desenvolvido em Manaus a partir de novembro e dezembro de 2020, cruzou as fronteiras com uma facilidade impressionante."O que aconteceu na América Latina nos últimos meses tem uma relação clara com o ingresso e a circulação da variante Gama a partir do Brasil", indica o médico Tomás Orduna, chefe do Serviço de Medicina Tropical e do Viajante do Hospital de Doenças Infecciosas F. J. Muñiz de Buenos Aires, na Argentina. O virologista Fernando Spilki, da Universidade Feevale, no Rio Grande do Sul, tem acompanhado como a variante Gama "viajou" Brasil afora."Os estudos demonstram que ela chegou a lugares como a Argentina e se tornou majoritária em toda a América do Sul", destaca.Spilki e Orduna lembram que a cepa que surgiu no Brasil não é a única a preocupar os cientistas latino-americanos: a variante Lambda, que veio do Peru, apresenta algumas características que facilitam a sua transmissão. "Ela chegou a representar mais de 80% dos casos de Covid-19 no Peru e foi introduzida na Argentina a partir da Bolívia, onde também já apresenta um crescimento importante", resume Spilki, que também coordena a Rede Corona-Ômica do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações. E tanto a Gama quanto a Lambda revelam mais uma das fragilidades latino-americanas: a falta de controle em aeroportos, portos e demais postos aduaneiros. "Nossas fronteiras possuem muitos poros, o que traz dificuldades quando estamos em pandemias", diz Orduna. "O melhor que poderíamos fazer é criar mecanismos de contenção inicial, para inibir o ingresso abrupto e intenso dos vírus ou das novas variantes. Mas nem esse controle seria capaz de evitar totalmente a entrada de indivíduos infectados", raciocina o especialista argentino. O que fazer agora?São Luís já vacina contra a Covid pessoas abaixo de 30 anos sem comorbidades.Divulgação/Prefeitura de São LuísDiante de números tão ruins, a melhora da situação na América Latina passa invariavelmente por duas ações prioritárias: políticas ajustadas de restrição da mobilidade (o popular lockdown) e a aceleração das campanhas de imunização contra a Covid-19.Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil entendem que, no atual estágio, não é possível focar em apenas uma dessas coisas.E o exemplo prático disso é o Chile: o país começou a vacinação cedo e já conseguiu proteger quase metade de toda a população.Mesmo assim, os números de casos e mortes voltaram a subir por lá nos últimos tempos.Apesar de vacinação avançada, Santiago e outras regiões do Chile voltam ao lockdownGatica entende que o avanço na aplicação de doses gerou uma falsa sensação de segurança entre os chilenos. "As pessoas interpretaram a vacina como um passe de liberdade e entenderam que elas não precisavam mais se cuidar tanto", pensa."Faltou uma comunicação mais adequada para a população. Era necessário explicar melhor a razão das medidas, como o vírus se transmite, como as pessoas deveriam se comportar
", lista.Urbaez concorda: "A vacina é uma forma de controlar a pandemia no médio prazo. Só vamos conseguir melhorar as coisas mesmo quando tivermos uma porcentagem grande da população imunizada", antevê.Até que isso aconteça de verdade, seria necessário manter o máximo de pessoas em casa, com o auxílio social e financeiro tão importante num momento como esse.A restrição aliviaria os sistemas de saúde, que sofrem com a alta ocupação de leitos de enfermaria e terapia intensiva, e controlaria melhor as cadeias de transmissão, fazendo com que o vírus circule menos pela comunidade.Há também a urgência de fortalecer ou criar instituições capazes de pensar na saúde pública da região como um todo, avaliam os especialistas."Não podemos sempre correr atrás do prejuízo e apagar os incêndios que aparecem pela frente", opina Urbaez."Ações coordenadas e centralizadas permitiriam controlar a pandemia de uma forma muito mais rápida", aponta o infectologista. Numa perspectiva mais ampla, a pandemia de Covid-19 pode mostrar que a América Latina precisa atacar seus problemas estruturais mais urgentes e diminuir a desigualdade social e a pobreza. Só assim deixaremos de ser "a região das veias abertas", como escreveu o uruguaio Eduardo Galeano.