Mais uma vez, ONU acusa França de preconceito religioso por impedir uso do véu islâmico

Mais uma vez, ONU acusa França de preconceito religioso por impedir uso do véu islâmico
Comitê de Direitos Humanos da organização se posicionou após francesa ser impedida de entrar em escola usando hijab. Uma mulher, usando um hijab e uma máscara protetora, caminha na praça Trocadero, perto da Torre Eiffel, em Paris, França, 2 de maio de 2021

REUTERS/Gonzalo Fuentes

Nesta semana, o Comitê de Direitos Humanos da ONU acusou a França de discriminar Naima Mezhoud ao proibir que ela participasse de um curso em uma escola pública enquanto usava um hijab, lenço islâmico que cobre os cabelos. O caso ocorreu em 2010.

À época com 35 anos, Mezhoud, que é francesa, estava matriculada em um curso de assistente de administração oferecido por uma instituição próxima à Paris onde adolescentes são proibidas por lei de usar o hijab. Quando chegou, a diretora da escola impediu-a de entrar no local.

Em documento oficial, o Comitê alega que a atitude violou os artigos 18 e 26 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. "A liberdade de manifestação da religião abrange o uso de roupas ou chapéus distintos e considera, portanto, que a proibição imposta à autora constitui uma restrição ao exercício do seu direito à liberdade de manifestação religiosa", declara o texto.

As possíveis consequências da decisão ainda não estão claras. Entretanto, o especialista em direitos humanos Nicolas Hervieu, do Instituto de Estudos Políticos de Paris, acredita que, de acordo com precedentes legais, é improvável que a França cumpra a decisão da corte.

Isso porque, as decisões tomadas pela entidade, que é composta por especialistas independentes que supervisionam o cumprimento da Convenção Internacional de Direitos Civis e Políticos (ICCPR), não são obrigatórias. Entretanto, segundo um protocolo opcional do tratado, a França tem a obrigação internacional de cumpri-las "de boa fé".

Mesmo assim, o advogado de Mezhoud vê o parecer da ONU como um avanço. "Esta é uma decisão importante que mostra que a França tem esforços a fazer em termos de direitos humanos e, em particular, na questão do respeito às minorias religiosas e, mais particularmente, à comunidade muçulmana", afirmou Sefen Guez Guez.

Caso semelhante em 2018

Esta não é a primeira vez que a ONU condena a França por islamofobia. Em 2018, o Comitê se manifestou após duas francesas se queixarem por, em 2012, serem condenadas por vestirem o niqab, outro tipo de véu utilizado por mulheres muçulmanas.

Na época, o Comitê disse que a proibição prejudicava desproporcionalmente o direito das seguidoras do Islã de manifestar suas crenças religiosas. De acordo com eles, a atitude poderia levá-las a ficar confinadas em casa e marginalizadas.

Também à ocasião, o Comitê deu 180 dias para o governo da França prestar contas sobre suas ações e recomendou o pagamento de uma indenização as mulheres, mas os franceses não se pronunciaram.

Islã na França

A França é o lar de uma numerosa minoria muçulmana, e, durante anos, o país aprovou leis destinadas a proteger sua forma rígida de secularismo, conhecida como laïcité, que o presidente Emmanuel Macron afirmou estar sob ameaça do islamismo radical.

Em 2004, a França proibiu o uso de hijab e outros símbolos religiosos visíveis nas escolas públicas por jovens em idade escolar. Seis anos depois, em 2010, o país aprovou uma lei que estipula que "ninguém pode, em um espaço público, usar nenhum artigo de vestimenta concebido para ocultar o rosto" — o que afeta justamente quem usa véus como o niqab.

A pandemia de Covid-19, entretanto, colocou esta questão em xeque. Isso porque, em 2020, a França instaurou o uso obrigatório de máscaras, que é um tipo de cobertura facial, para impedir a proliferação do novo coronavírus.

Um relatório divulgado pelo Coletivo Contra a Islamofobia na França, em 2019, revelou que 70% dos muçulmanos vítimas de preconceito religioso eram mulheres. Em 2020, o governo francês forçou a organização a fechar as portas.

O véu islâmico

O véu usado por seguidoras do Islã é um símbolo cultural e religioso que existe em várias versões e, na maioria das vezes, é utilizado de acordo com o desejo de cada mulher. O uso das vestes é imposto apenas no Irã, na Arábia Saudita e nas partes do Afeganistão e do Paquistão ocupadas pelo Talibã.

Embora a pressão social leve muitas muçulmanas a vestirem o acessório em outras regiões do planeta, seu uso não é imposto pela religião.

O Alcorão, livro sagrado do Islamismo, sugere apenas que os seguidores da religião cubram o cabelo, as orelhas e o pescoço para melhor prática da chamada modéstia islâmica. No caso dos homens, barbas e turbantes são a forma encontrada por muitos para seguir essas diretrizes.

No livro sagrado, a palavra usada para descrever o véu é "hajaba", que significa "ocultar" ou "tirar do campo de visão" — daí o termo genérico "hijab" — e não define exatamente como o accessório deve ser. Assim, existem diversas versões da vestimenta, que variam em cores e formas.

O crescimento da islamofobia nos últimos anos, principalmente após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, deu um novo significado para o lenço. Além de manisfestação cultural e religiosa, o véu se tornou símbolo de resistência.