Boric completa um ano de governo com reformas travadas e crise de segurança pública no Chile

Boric completa um ano de governo com reformas travadas e crise de segurança pública no Chile
Presidente chileno vive impasse por rejeição na Câmara de reforma tributária, que financiaria seu programa social. País passa ainda por crise de segurança pública. Gabriel Boric é empossado como presidente do Chile em 11 de março de 2022.

Reuters

Eleito com uma agenda que prometida profundas reformas no Chile, o presidente do país, Gabriel Boric, conclui seu primeiro ano de mandato com projetos travados pela oposição no Congresso e aumento dos números de criminalidade no país.

O governo chileno, no entanto, tem algo a comemorar: a economia apresenta uma recuperação melhor do que a esperada.

As pesquisas de opinião deram um descanso ao presidente Gabriel Boric, que viu seus índices de aprovação aumentarem nas últimas semanas.

No entanto, o presidente chileno enfrenta o que alguns especialistas chamam de “crise de segurança pública” e acaba de receber um duro golpe no Congresso. Tudo isso em meio a um incerto processo de reforma constitucional que acaba de ser reiniciado nesta semana.

Na última quarta-feira (8), a Câmara dos Deputados do Chile rejeitou a proposta de reforma tributária encaminhada pelo Executivo. O projeto é avaliado como um dos mais importantes do governo de Boric e considerado a base para a aprovação das demais propostas prometidas durante sua campanha.

Com um placar apertado, 73 votos a favor e 71 em contra, os deputados chilenos reprovaram o texto em seu conteúdo geral. Ou seja, impediram que a norma nem sequer fosse avaliada artigo por artigo. Parlamentares de oposição defenderam que a proposta prejudicaria a classe média e as pequenas e médias empresas.

Os deputados usaram a rejeição para pedir mais negociação. “Isso é uma chamada de atenção para o governo, que precisa buscar acordos. Não se pode tentar convencer somente com as boas ideias de um projeto, é preciso buscar acordos uma vez que não se tem a maioria", declarou o deputado do partido de centro Democracia Cristã Alberto Undurraga a meio de comunicação local:

O projeto contém pontos-chave como modificações no imposto de renda, medidas contra a evasão fiscal, indicações para cobrança de royalties para a indústria de mineração e criação de uma tributação para os super-ricos.

Em uma entrevista coletiva dada no mesmo dia, Boric criticou a decisão que impediu o debate.

“Essa é uma boa notícia para quem sonega impostos com impunidade e vergonha. Devo ser sincero com vocês, chilenas e chilenos: quando o país começa a dar sinais de recuperação, quando começamos a sair de uma longa crise, mais uma vez um setor tenta fazer com que as coisas não mudem, deixar as coisas como estão. Parece que não aprendemos com as lições do passado", afirmou.

Esta não é uma mera derrota legislativa para Boric. A reforma, que buscava elevar 3,6% do PIB em quatro anos, é fundamental para financiar o programa social do governo.

“Sem dúvida essa reprovação da reforma tributária é um golpe bastante severo. Há um impacto político porque isso quebra a confiança no oficialismo, porque não foi pela iniciativa da oposição que esse projeto caiu, mas porque se produziram dissidências entre os próprios parlamentares oficialistas, sendo que três deles se abstiveram da votação”, explicou Octavio Avendaño, professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade do Chile, que adicionou que essa situação “pode gerar tensão no oficialismo” e que a derrota no Congresso “limita a possibilidade de concretizar muitas iniciativas sociais”.

Grandes promessas e polarização

Gabriel Boric, presidente eleito do Chile, tem 1º dia de trabalho

Gabriel Boric chegou ao cargo político mais alto do Chile após um processo eleitoral marcado pela polarização e venceu o experiente político de extrema direita José Antonio Kast no segundo turno das eleições presidenciais de dezembro de 2021. Ele tomou posse em 11 de março do ano seguinte aos 36 anos de idade, sendo o presidente mais jovem da América Latina e um dos mais jovens do mundo.

Boric é um líder político que nasceu no movimento estudantil e que chegou à presidência. Ele foi eleito com promessas de profundas reformas após quatro anos do mandato do presidente de direita Sebastián Piñera, marcados pelos protestos de outubro de 2019, que continuaram acontecendo até o começo da pandemia da Covid-19 e só pararam devido ao lock-down proposto pelo governo.

Na época, milhões de pessoas saíram às ruas das principais cidades do país, especialmente na capital Santiago, para protestar contra a desigualdade social.

Alianças necessárias e ajustes no meio do caminho

Em seus primeiros meses como presidente, Boric, que também é líder da coalizão de governo, da qual faz parte também o Partido Comunista, clamou pela unidade e constituiu um Executivo ao lado de figuras políticas proeminentes da centro-esquerda chilena e que o apoiaram no segundo turno presidencial.

O presidente disse que cumpriria suas promessas de campanha, incluindo uma reforma previdenciária para modificar o sistema privado chileno, uma reforma no sistema de saúde e resolveria a questão da violência no país.

No entanto, uma série de contratempos o levou a modificar seu governo várias vezes, afastando alguns representantes da ala mais radical de seu partido e substituindo-os por figuras de centro-esquerda, e suas principais reformas ficaram estagnadas.

O fracasso do primeiro processo constituinte chileno, em 2022, também representou um duro golpe para o governo. Em setembro de 2022, os chilenos rejeitaram o texto em uma eleição obrigatória para todos os maiores de 18 anos, a primeira em 10 anos. Pouco menos de 62% dos eleitores optaram pelo “rejeito” e 38% votaram na opção “aprovo”.

“A agenda do governo dependia muito disso [da aprovação da carta constitucional]. Depois da rejeição por parte dos chilenos, o governo precisou armar novamente sua agenda política. Dentro dos problemas que tem enfrentado Boric, podemos destacar a criminalidade e a alta taxa de imigração irregular, isso junto com a forte queda econômica que mostrou alguns sinais de recuperação nos últimos meses”, explicou Miguel Ángel López, cientista político do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile.

Crise de segurança pública e imigração irregular

O primeiro ano do governo de Gabriel Boric também foi marcado pelo aumento de alguns índices de criminalidade. A taxa de ocorrências policiais registradas em 2022, por exemplo, apresentou um crescimento de 44% em relação a 2021, segundo dados da Subsecretaria de Prevenção ao Crime do Ministério do Interior.

Além disso, os roubos com violência cresceram 63% se comparados ao mesmo período anterior. Os homicídios cresceram 33% e, um estudo do Observatório Judicial intitulado "Homicídios: Radiografia de suas persecuções", constatou a queda progressiva da eficácia punitiva. Isso significa que existe uma relativa diminuição do número de condenações e aumento das absolvições em casos de homicídios.

Apesar de não ser um problema deste governo, Boric precisou arcar com as consequências de anos de uma política imigratória pouco eficiente herdada de governos anteriores de Michelle Bachelet e Sebastián Piñera.

Há cerca de 15 dias, militares estão alocados no norte do país, especificamente nas fronteiras entre o Chile, a Bolívia e o Peru. A medida deve durar pelo menos pelos próximos três meses e acontece após a aprovação da Lei de Infraestrutura Crítica, promulgada pelo presidente em janeiro deste ano, o que permite às Forças Armadas assumir a proteção do país quando houver “ameaça grave ou iminente”.

No Chile, há 1,4 milhão de migrantes o que corresponde a 7,5% da população. Estes dados são de 2021 e o número é provavelmente maior, diante do alto fluxo diário de migrantes que chegaram ao país nos últimos dois anos, principalmente pelas fronteiras terrestres.

Os desafios econômicos

Mario Marcel, ministro da Fazenda do Chile, está no centro de outro dos grandes problemas deste primeiro ano de governo de Boric: a economia.

O Chile terminou os anos de 2021 e 2022 com crescimento do PIB, mas não foi devido a uma melhora estrutural nas finanças do país, mas sim por causa da recuperação após a pandemia da Covid-19 e também ao aumento do consumo devido aos saques que os chilenos fizeram aos seus fundos de pensões, valores que seriam destinados às suas aposentadorias.

Esses saques de dinheiro da previdência individual de cada cidadão foram aprovados pelos parlamentares e ocorreram em 2020 e 2021.

O ano passado também foi marcado por uma alta de preços não vista há décadas no país, que terminou o ano de 2022 com uma inflação de 12,8%, a maior desde 1991, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE). Tudo isso fez com que as previsões de crescimento para este ano não fossem boas. O Fundo Monetário Internacional, por exemplo, projeta uma contração de 1% do PIB chileno em 2023.

No entanto, nem tudo é má notícia. A economia chilena parece ser mais resiliente do que se esperava e o Índice de Preços ao Consumidor (que serve de referência para medir a inflação) registrou uma queda surpreendente de - 0,1% em fevereiro, quando os especialistas esperavam que ele crescesse para 0,4% É a primeira vez desde novembro de 2020, época de plena pandemia da Covid-19, que se observa uma queda no custo de vida.

Popularidade e aprovação

O governo de Boric também recebeu reconhecimento de vários setores por sua resposta aos grandes incêndios florestais que o país enfrenta desde fevereiro deste ano. Boric apoiou os bombeiros e brigadistas que combatem as chamas no sul do país e forneceu fundos estatais para tentar minimizar o problema.

Além disso, foi anunciado um plano de ajuda financeira que já começou a ter seus recursos destinados para as famílias afetadas. O plano de aceleração de construção de casas de emergência, que são moradias pré-fabricadas e que levam menos tempo para ficarem prontas, está em marcha e a meta é deixar tudo pronto antes do inverno.

Esse episódio é apontado pelos especialistas como a razão do crescimento de sua popularidade, que vinha caindo desde o final do ano passado. Para 33,8% dos entrevistados na pesquisa Pulso Ciudadano, divulgada no final de fevereiro, o trabalho do governo foi avaliado como bom ou muito bom.

Com isso, o presidente conseguiu aumentar sua popularidade, mesmo que timidamente, como mostram duas pesquisas que constataram uma melhora em sua aprovação nas últimas semanas: 35% segundo o Cadem, o melhor número desde setembro passado; e 39%, segundo a Criteria, o melhor patamar desde que Boric assumiu o cargo.