Cerceamento do direito de defesa e a proibição de teses pelo STF: o silêncio ensurdecedor dos atores competentes

Em meio a um cenário jurídico-político complexo e recheado de radicalismos, poucos temas conseguem unir a atenção e a preocupação de diversos setores da sociedade.

Foto: O Antagonista

Foto: O Antagonista

Em meio a um cenário jurídico-político complexo e recheado de radicalismos, poucos temas conseguem unir a atenção e a preocupação de diversos setores da sociedade. Ainda mais raros, são os temas que conquistam uma posição unânime perante uma sociedade de preferências políticas polarizadas.

Mesmo assim, não houve nenhuma grande surpresa ou insatisfação de quaisquer setores da nação quando em julgamento histórico, a mais alta corte do país, por unanimidade, declarou como inconstitucional a utilização da tese de "legítima defesa da honra" nos casos de competência do júri popular.

Durante o julgamento, os Ministros apresentaram uma verdadeira retrospectiva histórica do papel da mulher na sociedade brasileira, bem como das dificuldades sui generis e violências sofridas pela simples condição de ser do gênero feminino. Em fundamentado voto, a Min. Rosa Weber (na época presidente da corte) relembrou trecho célebre do clássico de Jorge Amado que decretava "honra de marido enganado só com sangue pode ser lavada".

Antes de qualquer reflexão sobre as consequências positivas ou negativas do julgamento, cabe a observação de que o tema apenas ganhou a devida notoriedade após o assassinato de uma Juíza no rio de janeiro, na véspera de natal de 2020. Menos de 10 (dez) dias depois, foi protocolada a ADPF nº 779 que resultou na decisão em comento. Infelizmente, não é raro que sejam tomadas decisões "as pressas" relativas ao direito penal e processual penal de nosso país quando os fatos se relacionam com pessoas de alto poder aquisitivo, e, invariavelmente, brancas.

Numa rápida digressão, podemos citar que logo após a morte de Daniela Perez o congresso se apressou em classificar o homicídio como crime hediondo, a criação do crime "invasão de dispositivo informático", após o vazamento de fotos íntimas de Carolina Dieckamann, e, mais recentemente, a "Lei Mariana Ferrer".

Em que pese o latente anacronismo e inegável incompatibilidade da tese rechaçada pelo STF em nossa sociedade atual, ela não é livre de críticas. Em um primeiro momento, em razão da já citada soberania do tribunal do júri, um dos pouquíssimos resquícios de democracia direta presentes em nossa sociedade, visto que os jurados absolvem ou condenam sem nenhum agente intermediário.

Ademais, a verdade é que a decisão não se limitou a declarar que o argumento não tem mais em espaço em nossa sociedade e não foi recepcionada pela constituição, ela foi além! O acórdão da corte determina que: "Na hipótese de a defesa lançar mão, direta ou indiretamente, da tese da "legítima defesa da honra" (ou de qualquer argumento que a ela induza), seja na fase pré-processual, na fase processual ou no julgamento perante o tribunal do júri, caracterizada estará a nulidade da prova…".

A abrangência da decisão, que nula qualquer prova associada à referida tese, mesmo que indiretamente, levanta preocupações legítimas sobre possíveis consequências e implicações para casos futuros. Esta lacuna legislativa pode ser explorada de maneira oportunista, comprometendo o direito de defesa e minando a credibilidade do sistema judiciário como um todo. Ora, a utilização de um pleito legítimo para inserir disposições prejudiciais ao exercício pleno da defesa não é uma novidade no cenário jurídico brasileiro, mas exige uma atenção redobrada para evitar abusos e injustiças.

Existem diversos argumentos jurídicos e sociais plenamente autênticos que, embora não se confundam diretamente com a legítima defesa da honra, podem apresentar pontos de contato com a referida a odiosa tese.

Por exemplo, nossa legislação prevê a figura do homicídio privilegiado, a qual pode ser aplicada em caso o autor do crime tenha cometido o ato "sob domínio de violenta emoção", e tenha ocorrido logo após injusta provocação da vítima.

No caso concreto em que o júri tenha reconhecido o privilégio de um réu condenado por matar o amante de sua mulher após surpreende-los no ato e ser ofendido sedutor, nada impede que o Ministério Público busque anular o julgamento com base na decisão citada.

A utilização de termos abertos e genéricos como "indiretamente", aumenta de maneira relevante a insegurança jurídica, e constitui mais um golpe ao nosso exaurido direito de defesa, visto que evidentemente assim o limita. O uso de um pleito legítimo para inserir "jabutis" não é novidade no âmbito legislativo, contudo, vem ocorrendo cada vez mais no poder Judiciário.

Recentemente, em outra polêmica envolvendo o tribunal do júri, o Supremo entendeu que a soberania do tribunal do júri na hipótese de absolvição por clemência, está adstrita a crimes que sejam suscetíveis de graça ou anistia. Minando, assim, não apenas a soberania da decisão dos jurados, mas também o próprio direito de defesa. (RHC 229558 AgR / PR -Rel. Min. Nunes Marques).

Até para demonstrar o caminho que está sendo trilhando pelas pressões e influências políticas e sociais no "guardião da Constituição" (STF), cita-se que, recentemente se iniciou no dia Internacional da Mulher (08/03/2024 – ADPF 1107) julgamento para analisar a vedação da Defesa de utilizar a tese que "desqualifique a vítima". Ocorre que, mesmo que o direito penal básico preveja inúmeras hipóteses de culpa exclusiva da vítima; e ou vítima que causa o fato; agora, busca-se restringir mais uma tese defensiva, a qual será proibida de ser ventilada.

Pois bem, diariamente advogados também enfrentam obstáculos crescentes para realizar suas sustentações orais, enquanto réus acusados de crimes graves são privados do direito fundamental de um julgamento presencial justo. Esses desafios evidenciam uma tendência preocupante de restrição aos direitos fundamentais, sob o pretexto escolhido da vez (recrudescimento penal, eficiência processual, ou qualquer outro que seja).

Nesse contexto, o silêncio ensurdecedor dos atores jurídicos competentes como a OAB ou o próprio Ministério Público que deveria atuar como fiscal da lei e garantir a justiça e não apenas a a acusação estrito senso, diante dessas violações é igualmente preocupante, de forma que é tarefa de todos zelar pela observância dos princípios constitucionais e pela defesa intransigente do devido processo legal.

A preservação do direito de defesa não é apenas uma questão jurídica, mas sim um pilar essencial da democracia e da justiça. É hora de refletirmos sobre o verdadeiro custo de cada restrição a esse direito fundamental, lembrando que a defesa não é apenas um direito individual, mas sim a garantia da equidade e da dignidade de todos os cidadãos perante a lei. Portanto, tempos sombrios se avizinham em caso de maiores limitações no mister defensivo.

Eduardo Maurício, advogado no Brasil, em Portugal, na Hungria e na Espanha. Doutorando em Direito – Estado de Derecho y Governanza Global (Justiça, sistema penal y criminologia), pela Universidad D Salamanca – Espanha. Mestre em direito – ciências jurídico criminais, pela Universidade de Coimbra/Portugal. Pós-graduado pela Católica – Faculdade de Direito – Escola de Lisboa em Ciências Jurídicas. Pós-graduado em Direito penal econômico europeu; em Direito das Contraordenações e; em Direito Penal e Compliance, todas pela Universidade de Coimbra/Portugal. Pós-graduado pela PUC-RS em Direito Penal e Criminologia. Pós-graduando pela EBRADI em Direito Penal e Processo Penal. Pós-graduado pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol) Academy Brasil –em formação para intermediários de futebol. Mentor em Habeas Corpus. Presidente da Comissão Estadual de Direito Penal Internacional da Associação Brasileira de Advogados.

Victor Augusto Bialski, advogado criminalista, bacharel em Direito pela FAAP. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal Aplicados pela EBRADI. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pela PUC/RS. Pós-graduado na Lei de Drogas pela Faculdade Alves Lima (FAAL), mantida pelo Instituto de Estudos Jurídicos (IEJUR). Pós-graduado em Direito Antidiscriminatório e Diversidades pela Damásio Educacional. Vice-Presidente da Comissão Estadual de Direito Penal Internacional da ABRACRIM-SP. Membro da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB de Santo Amaro.

Lucas Pita, advogado criminalista formado pela FAAP, autor da obra “A Retroatividade do ANPP Frente o Princípio da Legalidade e a Jurisprudência do STJ/STF”, membro da comissão da advocacia criminal da OAB Cotia e palestrante convidado.